Vikings na selva do Brasil

ago 31, 2012 by

O mito de que aventureiros escandinavos estiveram em terras brasileiras no período pré-colonial, quem diria, serviu de mote para uma HQ ufanista

 

por Johnni Langer

Uma criança e uma mulher observam vestígios de uma embarcação estranha na floresta amazônica. Depois eles encontram um guerreiro exótico, de pele branca e barba grande. É o início do confronto entre povos totalmente diferentes, do qual um deles sairá vencedor. Muito antes de o filme “Desbravadores: a lenda do guerreiro fantasma” (2007), de Marcus Nipel,retratarde forma fantasiosa o conflito entre ameríndiose vikings, o ilustrador Rodval Matias fez a melhor adaptação visual deste imaginário.

Paulista criado no interior do Paraná, ele iniciou a carreira influenciado pelo americano Alex Raymond e, mais tarde, especialmente pela estética das aventuras épicas e fantasias de “capa e espada”, comuns nos anos 1970. O interesse de Rodval Matias por narrativas históricas o levou a criar álbuns sobre o Brasil colonial – o auge dessa produção aconteceu entre 1990 e 1994, quando lançou a coleção Orinoco, impressa na Bélgica em três volumes.

Em 1981, Rodval publicou o quadrinho Guaraci-aba (Editora Nova Sampa). Nele, um grupo de navegantes vikings, após se perder no mar, encontra um confluente do Rio Amazonas. Com o intuito de construir uma nova embarcação, os nórdicos entram em choque com os índios ticunas, que os chamam de demônios guaraci-aba (cabelos dourados). Após muitas batalhas, os estrangeiros são vencidos.
Os vikings de Rodval foram baseados no quadrinho norte-americano O príncipe valente, de Hall Foster, veiculado em jornais dominicais a partir de 1937 e que se tornou um dos principais propagadores dos estereótipos da Idade Média. Os nórdicos eram representados usando elmos com chifres e asas, dorso nu e roupas feitas de pele de animal, as mesmas imagens fantasiosas que se tornaram populares nas óperas do século XIX e que ficaram famosas no cinema hollywoodiano. Já a ideia de que esses aventureiros estiveram no Brasil é muito mais antiga.

Na década de 1830, a revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou alguns estudos defendendo essa teoria, quase sempre vinculada às inscrições da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, mas também a supostos marcos pré-coloniais espalhados pela América do Sul. Buscando uma identidade nacional diferente da portuguesa, os historiadores desse período elegeram os nórdicos como os fundadores iniciais de nosso país. Algum tempo depois, os acadêmicos deixaram de lado essas especulações, mas elas prosseguiram no imaginário popular. Em 1975, o pesquisador francês Jacques de Mahieu (1915-1990) revitalizou o mito, publicando o livro Os vikings no Brasil em várias línguas. A obra misturava fantasias e até falsificações, sem comprovações históricas, mas fez muito sucesso comercial. Na década de 1980, vários romances apresentaram a trama, como Operação vikings da Amazônia, de Luiz de Santiago.

No quadrinho de Rodval, a narrativa é baseada na oposição entre os habitantes da Amazônia – quase “puros”, idealizados como integrantes de um verdadeiro paraíso – e os nórdicos – invasores que corrompem a paz e a harmonia. Apesar de utilizarem uma tecnologia de guerra muito superior, com o emprego de armas de metal e do navio longo (drakkar), são vencidos pela coragem, determinação e honra dos índios. Os nativos são representados como ícones de um ufanismo típico da virada da década de 1970 para a de 1980. Com a Lei da Anistia e o início de novos horizontes políticos, durante o governo Figueiredo (1979-1985), algumas obras artísticas foram inspiradas por uma nova relação com as interpretações de nosso passado, desgastada, em parte, pela ditadura militar.

O momento mais importante de Guaraci-aba acontece quando o líder nativo conclama Tupã pouco antes da grande batalha e, do lado viking, seu chefe invoca Odin, o mais importante deus escandinavo. Enquanto os historiadores do início do Império almejavam um passado no qual os vikings seriam nossos heroicos antepassados, que aqui estiveram antes dos portugueses, depois eles se tornaram metáfora de influência estrangeira no Brasil, com caráter nocivo. Apesar de seu caráter guerreiro, eles devem ser vencidos e expulsos. Os ameríndios, deste modo, são os verdadeiros donos da terra. No período de abertura democrática, nada mais justo que reverenciar o heroísmo nativo.

Johnni Langer é professor da Universidade Federal do Maranhão e autor do livro Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking (Editora da UnB, 2009).

Saiba mais: 

LANGER, Johnni. Ciência e imaginação: a pedra da Gávea e a arqueologia no Brasil Império. Habitusn°1, 2003, PUC-GO, pp. 75-102.

Internet
www.rodvalmatias.com.br

Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br