Os fósseis inspiraram a mitologia?

jan 23, 2014 by

fossil hunter

A capa do livro de Adriene Mayor exibe detalhe do vaso no qual a autora se baseou para desenvolver a teoria de que muitos mitos da antiguidade teriam se originado da descoberta de fósseis de animais pre-históricos.

Durante décadas, estudiosos de arte grega se intrigaram com um desenho pintado em um vaso coríntio de 2.500 anos, atualmente exposto no Museu de Belas Artes de Boston. Nele, o herói Hércules combate um monstro do mar que ameaça a cidade de Tróia. Enquanto a cena é elaboradamente pintada, com Héracles atirando flechas na cabeça do monstro e Hesione lançando pedras sobre ele, a cabeça desligada do corpo olha de forma ingênua. Além disso, o osso maxilar articulado com os dentes da frente inclinados, a órbita ocular oca, o detalhe naturalista da estrutura nasal quebrada e a parte detrás estendida do crânio embutida em uma matriz escura convenceram Mayor, uma folclorista clássica de Princeton, Nova Jersey (EUA) de que o monstro é um desenho preciso de um fóssil. Sua interpretação revolucionária é de um estudo publicado no livro The First Fossil Hunters (Os Primeiros Caçadores de Fósseis). Ela comparou referências clássicas de monstros (em pinturas, mosaicos e textos) com achados paleontológicos em torno do Mar Mediterrâneo. As coincidências são notáveis. Sua pesquisa mostrou que aqueles fósseis pré-históricos existem nos mesmos lugares onde mitos sobre seres gigantescos surgiram.

Para Mayor ” Os autores antigos criaram os mitos sobre os heróis e gigantes para explicar os esqueletos de tamanho surpreendente que eles observaram diretamente na Ásia Menor e Grécia”.

A pista para chegar ao animal retratado no vaso coríntio estava em narrativas mitológicas milenares. Em um trecho da Ilíada, a poderosa epopéia escrita por Homero há 3.000 anos, Hércules salva Hesíone de ser sacrificada a um estranho monstro que assustava a cidade de Tróia. O extraordinário ser brotado da terra junto à costa, logo depois de uma enchente. “O artista deve ter visto ou ouvido falar de um crânio pré-histórico na região descrita por Homero e associou-o ao monstro vencido por Hércules”, entende Adrienne Mayor. Bastou vasculhar as peças recolhidas por paleontólogos especializados em fósseis mediterrâneos para encontrar a peça que se encaixava com precisão na teoria: o crânio de um Samotherium, uma girafa gigante do Mioceno. O animal, cuja cabeça chegava a medir mais de 60 centímetros, extinguiu-se há 10.000 anos e seus restos fossilizados são abundantes.

Ossos de mastodonte, mamute, rinoceronte, urso da caverna e outros grande animais eram para os gregos antigos a evidência real de que “os gigantes existiram uma vez, porque os restos assustadores deles podem ser vistos ao redor do mundo”, escreveu o autor grego Philostratus, em aproximadamente 218 d.C.

Polyphemos

Polyphemo

Em seu livro Mayor descobre as raízes de vários mitos. A história de Polyphemo – um gigante enorme, um ciclope com um só olho no meio da testa – pode ter sido inspirada pelos restos de elefantes anões, cujos crânios exibem um buraco no lugar onde a tromba é fixada. Para a batalha entre deuses e gigantes, a explicação é uma grande concentração de ossos fósseis achada em depósitos de carvão mineral ao redor de Megalópole, no Peloponeso Central. A grande concentração poderia ter inspirado a convicção de que exércitos inteiros de gigantes foram explodidos pelos raios de Zeus.

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O grifo mitológico e a ossada fóssil de um Protoceratops: origens no Deserto de Gobi.

Um caminho similar foi percorrido para chegar à origem fóssil do grifo, quimera que guardava as minas de ouro nos confins da Ásia. Esse animalgrifo2 fabuloso, com cabeça de ave de rapina e corpo de leão, fazia ninhos no solo e cuidava da prole de monstrinhos com o empenho de um passarinho. Apesar da descrição detalhada, não há relato na Antiguidade de alguém que tenha de fato visto o bicho vivo. Usando as ferramentas da moderna paleontologia, a pesquisadora americana ligou o ser mitológico aos restos de um tipo de dinossauro, o Protoceratops, comuns no Deserto de Gobi ( uma área de depósitos aluviais de ouro). Localizada na atual Mongólia, a região situa-se exatamente no local que a cultura greco-romana considerava os confins da Ásia. Muitos desses animais extintos há 65 milhões de anos morreram em posições pouco usuais, surpreendidos e soterrados por tempestades de areia. O solo arenoso do deserto faz com que os fósseis venham à tona com relativa facilidade, ao mesmo tempo que oferece imagens de grande impacto. “Como os modernos paleontólogos, os povos antigos devem ter observado os ossos e tentado adivinhar a que tipo de animal poderiam ter pertencido”, escreve Mayor. “É natural que tenham remontado o quebra-cabeça usando como referência animais que conheciam. Daí a mistura de leão e águia.”

Sabe-se desde o século XIX que ossos fossilizados faziam parte da vida na Antiguidade – e também que cada povo tenta interpretar as descobertas segundo as próprias crenças. O fundador da moderna paleontologia, o francês Georges Cuvier, ao escrever no início do século XIX sobre a evidência de animais extintos, imaginou tratar-se de espécies afogadas pelo dilúvio bíblico. Setenta anos depois, na escavação das ruínas de Tróia, o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann identificou em meio a jóias fabulosas as vértebras de animais gigantes extintos havia mais de 8 milhões de anos. “O local onde hoje está o Mar Mediterrâneo foi um grande corredor migratório de mamíferos gigantes há 15 milhões de anos”, explica a professora de antropologia biológica da Universidade de Bristol, Kate Robson Brown. “De tempos em tempos a atividade vulcânica, os terremotos e as colisões das placas tectônicas acabam expondo os fósseis.” É natural que os povos que habitaram essa região na Antiguidade topassem com os vestígios dessas criaturas. Em sua pesquisa, Adrienne Mayor encontrou evidências de que durante dez séculos, a partir do V a.C., a civilização greco-romana empenhou-se numa verdadeira corrida por sinais pré-históricos. Eram considerados provas materiais das batalhas dos gigantes e heróis clássicos. Ricaços conservavam os achados como preciosidades, junto com ouro e jóias. O poderoso Adriano, que reinou no século II, venerava ossos que julgava serem do gigante Ajax e os guardou num mausoléu especialmente construído na Ásia Menor. O imperador Augusto, por sua vez, ergueu um museu para expor sua coleção de fósseis na Ilha de Capri.

Fontes:

http://veja.abril.com.br

BONIFAZI; DELLAMONICA. Descobrindo a História: idade antiga e medieval. São Paulo: Atica, 2007.