‘Perguntar para uma criança o que ela quer ser é uma ofensa. Isso é apagar o que ela já é

jun 19, 2016 by

Por Mayana Penina

Era mais uma das tardes frias de São Paulo, mas quem esteve na primeira roda de conversa da Ciranda de Filmes no dia 9 de junho, teve seu coração aquecido. Com o tema “Mediador de mundos” Fernanda Heinz Figueiredo, uma das curadoras da Ciranda recebeu o líder indígena Ailton Krenak, o educador José Pacheco e a cantora de cantigas populares Lira Marques para uma conversa sobre os mestres. Neste bate-papo, os mestres apareceram nas figuras de lideranças comunitárias, guardiões de tradições originárias e educadores das práticas democráticas.

São muitos os mestres que inspiram e iluminam a longa jornada de aprendizado que é a vida e para exemplificar

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Ailton Krenac.

este pensamento, cada participante iniciou a conversa compartilhando uma memória de seus mestres da infância.

O mestre que quero compartilhar é esta entidade intangível que é a natureza. É uma aventura viver e sobreviver quando se está em fricção com a natureza. A natureza me ensinou o sentido da liberdade e que reconhece todos os outros como iguais. Isso é liberdade. E como vivo num mundo de iguais, não tenho do que ter medo

Ailton Krenak, dirige o Núcleo de Cultura Indígena, é idealizador do Festival de Dança e Culturas Indígenas, ambos na Serra do Cipó (MG).

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José Pacheco.

Eu nasci num cortiço onde não entrava polícia nem ambulância. O senhor Cardoso me livrou de um destino horrível, pois, na rua da minha infância,  ele era o único que lia livros. Todos os meus companheiros de infância morreram com menos de 30 anos e eu fui salvo pelos livros. Mais adiante fui encontrando outros mestres e hoje vejo que os maiores mestres são as crianças.

Em 1976, José Pacheco fundou a Escola da Ponte, referência mundial em pedagogia inovadora.

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Lira Maques.

Se eu sou uma artesã hoje é porque tudo que sei  eu aprendi com minha mãe.  Em época de Natal, ela fazia presépios para doar às famílias. Eu observei muito até começar a trabalhar com cera de abelha.  Foi minha mãe também que me ensinou os cantos de roda. Nós sentávamos nas calçadas para cantar e brincar de roda com adultos e crianças. Minha mãe foi minha principal mestra. Com ela aprendi a valorizar o que é próprio do nosso povo.

Lira Marques é educadora popular de Araçuaí (MG), cantora de cantigas populares, mestra na cerâmica.

Há mestres de sabenças ancestrais, como os avós, e mestres de saberes ligados ao embrião da humanidade, as crianças, aquelas que nascem mais para ensinar do que para aprender. “Por isso, perguntar para uma criança o que ela quer ser quando crescer é uma ofensa. Como se ela fosse receber um crachá de ‘ser’ só quando adulto. Isso é apagar o que ela já é”, criticou Ailton.

Complementando a ideia de que a natureza é um mestre, a educação e escolarização foi um dos temas bastante analisados por Ailton durante o evento.  Para ele, “a pasteurização das culturas chegou ao cúmulo de criar um formato do que seria uma escola. Isso é apagar todas as culturas, empastelar toda uma civilização”. O povo Krenak é extremamente resistente a ideia de alfabetização, letramento, escolarização. “Eu resisto bravamente à escrita pois é necessário que se mantenha a tradição oral”, disse.

A artista Lira ratifica a importância das relações com os antepassados, a tradição e memória. Lira fez uma vasto trabalho de pesquisa e registro de cantigas de roda e festejo local do Vale do Jequitinhonha.

Em outra experiência, o português José Pacheco, um dos grandes dinamizadores da gestão democrática contou sua experiência com escolas, que em sua opinião, também pode ser um instrumento de mudança. Pacheco fundou em 1976 a Escola da Ponte, referência mundial em pedagogia inovadora. Neste modelo, “numa aula não se aprende nada e uma prova não prova nada e, as escolas não são edifícios, são pessoas”. Reiterando a fala de Ailton, ele também citou as crianças como os mestres, que nos ensinam todos os dias.

Fonte: https://catraquinha.catracalivre.com.br