Sítio perto de Cuiabá indica presença do homem há 27 mil anos em Mato Grosso

dez 11, 2017 by

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Distante cerca de 80 quilômetros (km) a noroeste de Cuiabá, o município mato-grossense de Jangada está colado ao centro geográfico da América do Sul. Para qualquer lado que se ande, a visão do oceano, seja o Pacífico ou o Atlântico, somente aparece depois de percorridos ao menos 1.500 km. Nessa porção do Cerrado, a vegetação é mais densa e a serra das Araras, com altitudes entre 500 metros (m) e 800 m, pontua a paisagem. Em um abrigo sob rochas de difícil acesso, situado em um vale na parte sudeste da cadeia de montanhas, dois paredões calcários preservam um pedaço pouco conhecido da pré-história do Brasil e das Américas. Entre 1984 e 2004, o casal de arqueólogos Denis Vialou e Águeda Vilhena Vialou, do Museu Nacional de História Natural da França, coordenou escavações em duas áreas contíguas de 80 metros quadrados desse refúgio rupestre e encontrou indícios de que o homem moderno teria habitado a região em dois momentos: por volta de 27 mil anos e entre 12 mil e 2 mil anos atrás. Não há ossadas de Homo sapiens no local, mas uma série de vestígios indiretos de sua presença. Como a espécie humana teria se estabelecido em um ponto tão distante do litoral em tempos tão remotos é, no entanto, uma pergunta ainda sem resposta.

Uma síntese dos achados de duas décadas e dos estudos posteriores feitos com material obtido no abrigo Santa Elina, nome do sítio paleoarqueológico, ganhou as páginas da edição de agosto da revista científica Antiquity. As informações do artigo já tinham sido apresentadas em textos e até em livros escritos em português ou francês, mas não em inglês, e em uma revista internacional de peso da arqueologia. No trabalho, a brasileira Águeda e o francês Denis, com o auxílio de colaboradores, resumem os três tipos de vestígios da presença humana encontrados na região e as datações associadas a eles.

O primeiro são fragmentos de pedra que exibem marcas, como serrilhados, retoques e riscos, que só poderiam ter sido produzidas de forma artificial pela mão do homem com o auxílio de alguma ferramenta lítica. O segundo são ossos de dois exemplares de preguiças-gigantes do gênero Glossotherium descobertos em camadas geológicas com grande quantidade de artefatos de pedra trabalhados pelos habitantes do abrigo. “Encontramos dois adornos, com furos nas extremidades, feitos de osteodermas de preguiça”, comenta Águeda. Osteodermas são placas ósseas, semelhantes a escamas, que ficavam no dorso do animal. O terceiro tipo de vestígios compreende restos de fogueiras, de origem antrópica, presentes ao longo das camadas associadas à ocupação humana.

                                                                                                 O material obtido em Santa Elina está guardado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), onde o casal de arqueólogos dá aulas durante dois meses por ano como professores convidados. Alguns de seus colaboradores brasileiros são também pesquisadores da instituição paulista, como os arqueólogos Levy Figuti e Veronica Wesolowski de Aguiar e Santos. O acervo do abrigo rupestre conta com 4 mil peças da indústria lítica, além de mais de 200 ossos de preguiças-gigantes. “O sítio apresenta, ainda, cerca de mil pinturas rupestres”, destaca Denis. Nos paredões que protegem o abrigo, os desenhos, geralmente de figuras humanas, animais ou seres disformes, apresentam tons avermelhados, decorrentes do uso de hematita, principal forma do minério de ferro. A hematita era levada para o interior do sítio e esfregada contra blocos de pedra que formavam uma espécie de calçamento interno. Dessa forma, o homem pré-histórico obtinha o pigmento para seus desenhos. Esses blocos, alguns deles guardados no MAE-USP, apresentam ainda hoje manchas da cor do minério de ferro.

Diferentes amostras retiradas de Santa Elina, cujas escavações atingiram em alguns pontos 4 m de profundidade, foram submetidas a três técnicas de datação e os resultados foram convergentes. Mais de 50 amostras de carvão, restos de fogueiras por humanos encontrados nas camadas mais superficiais do sítio, foram datadas por carbono 14. A idade da maioria das amostras variou entre 2 mil e 12 mil anos e seis atingiram entre 10 mil e 20 mil anos. Lascas de madeira e microcarvões, provenientes de escavações mais profundas, também foram datados por esse método clássico e atingiram por volta de 27 mil anos. Dois ossos da megafauna, um retirado de uma camada mais superficial e outro oriundo de sedimentos mais profundos, foram submetidos ao chamado método urânio/tório. O primeiro obteve a idade de 13 mil anos e o segundo, de 27 mil anos. Três amostras de sedimentos contendo quartzo de camadas distintas (2,30 m, 3 m e 3,85 m de profundidade) foram datadas por termoluminescência óptica. As idades atingiram, respectivamente, 18 mil, 25 mil e 27 mil anos.

Escritos de índios
O casal franco-brasileiro tomou conhecimento da existência do abrigo Santa Elina no início dos anos 1980. Durante os meses que costumam passar no Brasil, Águeda e Denis foram convidados por um conhecido de Cuiabá para visitar sua fazenda em Mato Grosso, onde havia “escritos de índios” em pontos isolados da serra das Araras. A viagem foi proveitosa e rendeu a descoberta do abrigo rupestre recheado de pinturas e com rico material paleoarqueológico. Paralelamente às escavações em Santa Elina, a dupla, sempre com a colaboração de colegas e alunos de universidades brasileiras e francesas, também iniciou trabalhos de campo em outra parte de Mato Grosso. Perto de Rondonópolis, cerca de 300 km ao sul do município de Jangada, há um conjunto de mais de 170 sítios líticos denominado Cidade de Pedra. Além de pinturas, a região tem cerâmicas, adornos feitos com pedaços de hematita e uma abundância de resquícios de fogueiras antrópicas da pré-história. “Datamos carvões dessas fogueiras e os resultados indicam uma presença humana na Cidade de Pedra entre 6 mil e 2 mil anos atrás”, esclarece Águeda.

Adorno de 25 mil anos feito com osso de preguiça e artefato lítico modificado pelo homem

A cronologia proposta por Águeda e Denis para os sítios mato-grossenses, em especial para o abrigo Santa Elina, sinaliza que o Homo sapiens pode ter se estabelecido muito antes do que se pensava no centro da América do Sul. No Brasil, apenas a região do Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, apresenta indícios da presença humana tão ou mais antigos do que os de Santa Elina. Desde a década de 1980, a arqueóloga brasileira Niède Guidon sustenta que essa região do Nordeste, onde existem 1.350 sítios arqueológicos conhecidos, teria sido povoada pelo homem algumas dezenas de milhares de anos ou até mesmo 100 mil anos atrás.

Durante muito tempo, as datações mais antigas defendidas por Niède, que se baseavam em análises de carvão de fogueira e posteriormente de material lítico trabalhado pelo homem, foram alvo de grande polêmica. Nos últimos anos, novos estudos apontam que a presença humana no Piauí parece realmente ultrapassar ao menos os 20 mil anos. “Não há nenhum problema em haver datações muito antigas em vários pontos das Américas, como é o caso de Santa Elina”, comenta Niède, diretora-presidente da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), entidade civil que administra o parque em cooperação com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Mudança de paradigma
A cronologia da chegada do Homo sapiens às Américas, o último continente a ser conquistado pelo homem moderno, tem passado por grandes revisões nos últimos 15 anos. “Houve uma mudança de paradigma”, explica a arqueóloga Adriana Schmidt Dias, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A ideia difundida por colegas norte-americanos de que a chamada cultura Clovis fora a primeira das Américas atualmente se mostra superada pela descoberta de sítios mais antigos em várias partes do continente. Hoje as revistas científicas estão mais abertas a trabalhos que reforçam essa linha.” Conhecida fundamentalmente por meio das pontas de pedra resgatadas em localidades do estado do Novo México, a cultura Clovis apresenta sítios que foram datados em, no máximo, 13 mil anos. Sua suposta primazia em termos de antiguidade se casava com a hipótese da chegada, mais ou menos nessa mesma época, do Homo sapiens ao continente americano via Beríngia, antiga porção de terra firme que conectava a Sibéria ao Alasca, e sua posterior dispersão pelas Américas por rotas internas.

Pintura rupestre de um dos 170 sítios pré-históricos da Cidade de Pedra, perto de Rondonópolis

Enquanto essa abordagem predominou, sítios arqueológicos com indícios de serem mais antigos do que Clovis ou que não reforçavam a visão da entrada do homem moderno nas Américas pelo Alasca eram vistos com extrema desconfiança. O sítio chileno de Monte Verde tem sido, por exemplo, alvo de discussões acaloradas entre os arqueólogos desde a década de 1970, quando saíram os primeiros dados insinuando a presença do homem no sul do continente há 14,5 mil anos. A mais recente revisão do status de Monte Verde ocorreu em novembro de 2015, quando um estudo na revista PLOS ONE datou artefatos de pedra modificados por humanos em 18,5 mil anos.

Águeda e Denis evitam falar sobre como o homem teria chegado a Santa Elina, no coração da América do Sul, há mais de 25 mil anos. Devido à sua localização, o abrigo funciona como um refúgio natural em meio às elevações da cadeia de montanhas. É provável que a região tenha sido acessível por navegação fluvial desde tempos remotos, pois a serra das Araras está a 30 km do rio Cuiabá, um importante afluente da bacia do Paraná-Paraguai. “Não temos sítios arqueológicos de 25 mil anos em número suficiente nas Américas para esboçar uma rota provável”, diz Denis. “O que sabemos é que, há 10 mil anos, o homem já estava presente em todo o continente.”

Um levantamento publicado em 2013 na revista científica Quaternary International indica que, entre 13 mil e 8 mil anos atrás, o homem tinha se estabelecido em todas as grandes regiões e biomas do Brasil. O trabalho contabilizou dados de 90 sítios e 277 datações. “O homem provavelmente entrou nas Américas há pelo menos 18 mil anos”, sugere Adriana Dias, autora do estudo ao lado dos arqueólogos Lucas Bueno, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e James Steele, do University College London, no Reino Unido. “Mas a ocupação efetiva de todo o continente ocorreu por volta de 12 mil anos. Santa Elina é uma luzinha piscando no painel da colonização que atesta a possibilidade de ter havido um povoamento antigo no centro da América do Sul.”

Artigo científico
VIALOU, D. et al. Peopling South America’s centre: The late Pleistocene site of Santa Elina. Antiquity. vol. 91, 358, p. 865-84. ago. 2017.

Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br