Black Sabbath: os anos das trevas (1969-1974)
Jon Savage, um dos historiadores do punk e autor do excelente livro England’s Dreaming , escrevia em 1977 sobre uma compilação de êxitos dos Black Sabbath, reconhecendo-lhes o talento e a força, mesmo em pleno reinado dos Sex Pistols. “A Inglaterra pode ser deprimente até ao ponto da loucura”, garantia Savage nas páginas da Sounds, “dias húmidos e cinzentos meses a fio (…), vistas claustrofóbicas de campo apodrecido por séculos de industrialização. É esta área que os Sabbath têm descoberto nos últimos anos. De forma não consciente e bastas vezes não artística. Sem ideias grandiosas. (…) Só com digressões constantes e álbuns enlutados que venderam bem sem necessitarem da vigarice que é o selo de aprovação da crítica rock”. Num curto parágrafo, Savage identifica vários dos pilares do carácter único dos Sabbath – a origem numa Inglaterra industrial opressiva, a modéstia de propósitos numa época de grandiloquentes gestos “artísticos”, a devoção total aos fãs e um completo e saudável desrespeito pela “intelligentsia” rock. Lester Bangs, por exemplo, nunca lhes cedeu nenhuma vénia, nem nas páginas da Creem nem da Rolling Stone, onde chegou a descrever a sua música como “ingénua, simplista e repetitiva”. O que Bangs via como uma lista de defeitos pode hoje, de facto, ser encarado como parte das virtudes exibidas no arranque da carreira dos Black Sabbath.
Birmingham, onde os Black Sabbath nasceram, foi um dos mais importantes berços da revolução industrial e fica bastante próxima do chamado Black Country, área de Inglaterra onde se concentra boa parte da exploração de carvão, minério fundamental para as indústrias que floresceram naquela cidade que, não por acaso, também viu nascer os Led Zeppelin e os Judas Priest, entre outros grupos notórios. Foi numa dessas fábricas, de folha de aço, que Tommy Iommi perdeu as pontas de dois dedos da sua mão direita sendo obrigado a inventar uma espécie de próteses em plástico e cabedal para poder trabalhar sobre o braço da guitarra, uma vez que era canhoto. Para aliviar a pressão das cordas sobre os seus dedos, Iommi também a afinou numa escala mais baixa, o que ajuda a explicar o som “demoníaco” dos seus riffs. Desta forma, a própria história de Birmingham acabou por afectar o som de uma banda, sem necessidade de qualquer intelectualização, como haveria de referir Jon Savage.
Iommi, Bill Ward, Terry “Geezer” Butler e John “Ozzy” Osbourne passaram por várias bandas formadas na sombra de uma indústria que descolava graças aos Beatles e porque arranjar concertos era fácil numa cidade onde os pubs se acotovelavam em cada rua. O som era o dos blues, tocados de forma electrificada e pesada, como a própria cidade parecia exigir. Os quatro encontrar-se-iam primeiro nos Polka Tulk Blues Company -que contavam ainda com um guitarrista extra e um saxofonista – grupo de fugaz existência que depois da partida dos elementos exteriores ao quarteto se transformou nos Polka Tulk. Nenhuma banda poderia ter sobrevivido muito tempo com um nome daqueles e em Setembro de 1968 o grupo foi rebaptizado por Osbourne como Earth.
Tommy Iommi saiu temporariamente dos Earth em Dezembro do mesmo ano para se juntar aos Jethro Tull de Ian Anderson, mas essa aventura paralela durou poucas semanas. Em Janeiro de 1969, após ter participado com os Tull nas filmagens do Rolling Stones Rock and Roll Circus (planeadas para um programa de TV que nunca chegou a ir para o ar e foi finalmente editado em 1996), Tommy regressou aos Earth. Esta identidade seria, no entanto, alterada uma vez mais, quando Ozzy e companhia perceberam que havia outra banda com o mesmo nome: em Agosto de 1969 decidiram passar a chamar-se Black Sabbath, inspirados pelo filme italiano de Mário Bava ( I Tre Volti della Paura ) em que participava Boris Karloff e que nos mercados de língua inglesa levou o título Black Sabbath.
Apesar da lenda que rodeia a escrita do tema “Black Sabbath” (Butler garante que viu um vulto negro que lhe surgiu frente à cama), algo mais prosaico parece estar na origem da nova orientação estética do grupo: as biografias dos Sabbath referem todas o facto de o filme que lhes sugeriu o nome estar a ser exibido perto da sua sala de ensaios e citam Ozzy a explicar que o grupo percebeu que havia muita gente que pagava para ser assustada no cinema e que algo semelhante poderia resultar musicalmente. Muitos críticos e historiadores do rock sublinham o imediatismo dos Sabbath e a falta de profundidade conceptual, mas a verdade é que a banda parece ter nascido logo de um conceito bem estruturado e se por um lado abraçaram uma estética negra, obscura, que citava bruxas e cemitérios e horrores vários, por outro, como garantia Ozzy em 1972, desejavam “apenas entreter as pessoas – queremos dar-lhes uma viagem pelo bom e velho show business”. Há outra visão que, apesar de o tempo ter amolecido Ozzy, mostra que o seu bom coração parece funcionar desde sempre – em Janeiro de 72, logo na primeira digressão em Inglaterra após o regresso da América, já os Sabbath anunciavam shows de beneficência para a cidade de Carlisle, uma das primeiras a abraçar o grupo: “Queremos que as pessoas de lá saibam que não nos esquecemos delas”, assegurava Ozzy, “o dinheiro irá provavelmente para uma obra de caridade que trabalhe com crianças ou para um lar de idosos”. O diabo, certamente, tem outras preocupações.
Esta dedicação ao trabalho, evidente nos primeiros tempos, e as constantes digressões dos Black Sabbath no arranque da sua carreira trouxeram dividendos muito rapidamente: o grupo assinou contrato com a Philips em Dezembro de 1969 e em Janeiro do ano seguinte editou o seu primeiro single, “Evil Woman”, versão de um original dos americanos Crow.
A pressão do sucesso levou os Black Sabbath a regressar a estúdio muito rapidamente, poucos meses apenas depois da edição do primeiro álbum. Sem grande tempo de preparação – facto que obrigou a que algum material fosse escrito no estúdio, como aconteceu com o tema que deu título ao álbum – conseguiram, ainda assim, capitalizar naquilo que Simon Reynolds chamou “a melhor fábrica de riffs do mundo” para criar temas que tiveram uma importância tremenda no desenvolvimento do heavy metal, como são os casos de “War Pigs” ou “Iron Man”, dois colossos eléctricos que muito rapidamente fizeram disparar os sonhos de toda uma geração. O conteúdo das letras também atingiu um nervo geracional qualquer, reflectindo maleitas do dia como a guerra do Vietname, as doenças mentais ou os abismos da droga.
Este álbum foi editado em Setembro de 1970 em Inglaterra e apenas em Janeiro de 71 nos Estados Unidos, já que a editora americana não queria comprometer o bom desempenho que o álbum de estreia continuava a ter, meses depois da sua edição. A estratégia revelou-se acertada, já que o álbum estoirou na América, onde haveria de ultrapassar os quatro milhões de cópias vendidas.A conquista dos topes e a crescente popularidade nos palcos funcionaram como uma enorme pressão sobre o grupo que em Fevereiro de 1971 já estava de novo em estúdio a preparar um novo álbum, que levaria o título de Master of Reality . Como é óbvio, o sucesso alcançado significava mais tempo de estúdio, mais possibilidade de experimentar, mas também mais drogas na equação. De acordo com Steven Rosen, autor do livro The Story of Black Sabbath: Wheels of Confusion (Castle Communications, 1996), não foi apenas tempo de estúdio que o grupo recebeu em abundância, mas também “uma mala cheia de dinheiro” para comprar drogas.
Gravado na América, ao contrário dos seus antecessores, Master of Reality era lento e pesado e continha canções sobre cannabis (“Sweet Leaf”), possessão satânica (“Lord of This World”), religião (“After Forever”) e a incerteza reservada pelo futuro (“Into The Void”). Uma geração atenta que estudou as inflexões musicais de Iommi haveria mais tarde de criar géneros como o doom metal. O álbum conseguiu igualmente uma boa performance comercial e permitiu à banda o primeiro descanso sério desde 1969.
A gravação deste álbum, que ocorreu tal como o anterior em Los Angeles, foi muito complicada e deu razão a Saunders quando este apontava a influência das drogas no resultado final: o baterista Bill Ward quase foi despedido por não conseguir gravar as suas partes. E canções como “Snowblind” oferecem referências directas à droga de eleição dos rockers de Los Angeles. Aliás, o álbum esteve para se chamar Snowblind , mas a editora, uma vez mais (já tinha interferido antes, mudando War Pigs para Paranoid ), não permitiu, impondo o título algo incaracterístico de Vol 4 .A verdade é que o grupo continuava a trilhar um caminho muito próprio acusando cada vez mais a dependência das substâncias alucinogénicas que sempre os inspiraram – já “Planet Caravan”, “Hand of Doom” e “Sweet Leaf” o faziam.
As vendas continuaram a amontoar galardões de platina e as digressões começavam a cobrir cada vez mais milhares de quilómetros – na sequência de Vol 4 o grupo foi pela primeira vez à Austrália.
Após a digressão, os Black Sabbath voltaram a tentar gravar em Los Angeles, mas a omnipresença das drogas não facilitava a criação de novo material pelo que foi tomada a decisão de regressar a Inglaterra. Como longe iam os dias de gravações de álbuns em apenas dois dias, o grupo começou por alugar um castelo e procurar a inspiração nos ensaios nas masmorras, que rapidamente surgiu: foi aí que Iommi criou o riff para “Sabbath, Bloody Sabbath” que haveria de orientar o tom do álbum. Os arranjos também reflectiram o tom dos tempos incorporando não apenas os sintetizadores de Rick Wakeman dos Yes, mas também secções de cordas e outras inovações progressivas. A crítica rendeu-se por fim e aplaudiu a edição de Sabbath, Bloody Sabbath com a até aí céptica Rolling Stone a coroar o coro de elogios com declarações como “nada menos do que um completo sucesso”. Pela quinta vez consecutiva as vendas ultrapassaram a marca do milhão e vincaram a posição dos Sabbath como embaixadores de um novo sentir rock que no final da década traria efeitos espectaculares com a afirmação da New Wave of British Heavy Metal, uma nova geração de bandas que soube aproveitar as conquistas dos Black Sabbath, dos Led Zeppelin e dos Deep Purple para impor uma nova visão – mais ruidosa, mais enérgica – que no entanto não teria sido possível sem o pioneirismo de trabalhos como “Iron Man” ou “War Pigs”.
A 6 de Abril de 1974, quando milhares e milhares de pessoas se curvaram perante o poder dos Black Sabbath no monstruoso California Jam, pouco importavam as cores que Ozzy trazia vestidas. A electricidade, o volume, os riffs instantaneamente reconhecíveis, o poder, o carisma – esses eram os pontos importantes e os Black Sabbath eram verdadeiros mestres na sua manipulação. O futuro que se seguiu a esse dia apenas confirmou a enormidade em que os Black Sabbath se haviam transformado em apenas cinco impressionantes anos.