A caixa de Pandora: as transformações de um símbolo mítico

ago 12, 2014 by

pandora

Sinopse

Publicada originalmente em 1955, esta obra-prima de erudição debruça-se sobre as variações do mito de Pandora nas artes plásticas e na literatura, acompanhando as transformações da figura mitológica que é indissociável de seu ato dramático: a abertura do vaso e a liberação dos males do universo.
Valendo-se de materiais heterogêneos – pinturas, gravuras, esculturas, logotipos editoriais, emblemas, poemas e peças teatrais – os autores procuram decifrar os sentidos diversos que o símbolo adquiriu ao longo do tempo. Originada na Grécia Antiga e relativamente esquecida pelos clássicos latinos e pela tradição medieval, a imagem ressurgiu no Renascimento, sobretudo em solo francês, migrando daí para o resto da Europa.
No curso desses trajetos, ela se associa a Eva, à alegoria da Esperança, ao corvo e a Psiqué. Dentre todas as representações destaca-se a de Erasmo de Rotterdam, que no século XVI articula a imagem da mulher ao objeto proibido.

Combinando pesquisa histórica e faro interpretativo apurado, Dora e Erwin Panofsky compõem uma interpretação que conjuga com maestria exame estilístico e perspectiva comparada. Nos termos de Leopoldo Waizbort:

“É esse interesse pela dimensão cultural, por um lado, e pelas condicionantes antropológicas, por outro, [...] que fundamenta uma história social da arte”.

Trecho

“Nenhum mito nos é mais familiar que o de Pandora, mas talvez nenhum outro tenha sido tão mal compreendido. Pandora é a primeira mulher, a maldade em forma de beleza, ou ‘belo mal’; ela abre a caixa proibida, de onde saem todos os males que a humanidade haveria de herdar; somente a Esperança permaneceu. A caixa de Pandora se tornou uma imagem proverbial, e o mais extraordinário é que Pandora jamais possuiu caixa alguma.”

Essa afirmação de Jane Harrison, feita há mais de cinquenta anos, continua tão válida hoje quanto ontem. No entanto, alguns aspectos relacionados com o mito de Pandora ainda exigem uma análise mais profunda. Por que Pandora se tornou famosa graças a um atributo que nem era uma caixa nem lhe pertencia realmente? Como se explica que, ao contrário de tantos outros personagens mitológicos, ela não apareça na arte medieval e só reapareça – melhor dizendo, renasça – em território francês e não na Itália? E por que, a despeito da enorme quantidade de livros e ensaios dedicados a demonstrar tanto sua importância na religião, na arte e na literatura gregas quanto seu significado na obra de Goethe que leva seu nome, persiste uma lacuna sobre o que se passou com o mito no interregno desses dois momentos da história da arte?

Numa tentativa de responder a essas perguntas, não nos estenderemos em questões controversas como se Pandora foi originalmente uma divindade da terra (e, nesse caso, seu nome deve ser interpretado como “a que tudo doa” e não como “a que é dotada de tudo”); nem se ela abriu seu vaso proibido imitando as filhas de Cécrops, que imprudentemente destamparam a cesta que continha o pequeno Erictônio; nem se pithoigía (abertura do recipiente) reflete um ritual ligado ao festival de Antestéria, equivalente grego do Halloween. Tampouco tentaremos dissipar a obscuridade que cerca o locus classicus, a famosa versão de Hesíodo da história de Pandora no livro Os trabalhos e os dias (complementada por uma passagem mais curta da Teogonia), que tem desafiado a criatividade dos intérpretes há mais de mil anos. Tendemos a pensar, como Schopenhauer e um bom número de estudiosos modernos, que a fábula de Bábrio, na qual o homem como tal (ánthropos) assume o lugar de Pandora e o vaso contém coisas boas em vez de coisas ruins, reflete melhor o sentido original do mito que a versão imposta à posteridade por Hesíodo. Mas temos de reconhecer que essa não é uma questão resolvível pelos historiadores da arte.

Começaremos, então, com um breve resumo das afirmações factuais sobre Pandora encontradas na literatura grega que nos parecem mais relevantes.

Primeiro, Pandora era a imagem de uma bela mulher, formada de terra e água, seja por Prometeu, o criador de todos os homens (de acordo com o que parece ser a tradição mais antiga), seja por Hefesto, instigado por um Zeus vingativo (de acordo com Hesíodo e com os seguidores de sua versão).

Segundo, essa imagem foi dotada de alma por Atena ou pelo próprio Prometeu – graças ao fogo roubado do céu -, e aperfeiçoada por todos os outros deuses, cada um dos quais lhe concedeu um dom apropriado (daí seu nome “Pandora”). E como os dons ofertados por Afrodite e Hermes eram mais nefastos que benéficos, o produto final se revelou um kalòn kakón, um “belo mal”.

Terceiro, Pandora foi transportada para a terra por Hermes e aceita como esposa por Epimeteu, irmão de Prometeu, apesar das advertências deste último. Dessa maneira, Pandora tornou-se mãe de todas as mulheres.

Quarto,enquanto vivia com Epimeteu, ela trouxe ao mundo o vício e a doença ao abrir um vaso fatal cujo conteúdo, à exceção da Esperança, no mesmo instante escapou e se dispersou no ar. De acordo com Hesíodo e a quase totalidade dos autores, o vaso continha originalmente todos os males; de acordo com Bábrio e um escritor menos renomado, Macedônio, o Cônsul, o recipiente continha todos os bens, mas jamais se disse, até onde sabemos, que nele estivesse uma combinação equilibrada do bem e do mal.

Quinto, esse recipiente é invariavelmente designado como um píthos (dolium em latim), um enorme vaso de barro usado para guardar vinho, azeite e outras provisões, com frequência descrito como grande o suficiente para servir de sepultura ou, mais tarde, de abrigo para os vivos. A tampa que impede a fuga da Esperança é descrita como “grande”.

Sexto, esse píthos (“que não é um vaso portátil”) nunca é apresentado como um objeto pertencente a Pandora, algo que ela tivesse trazido desde o monte Olimpo; ao contrário, parece evidente que o vaso fazia parte dos utensílios domésticos, por assim dizer, do casal Epimeteu e Pandora. Um autor, Filodemo de Gádara, chega a atribuir o ato de destampar o vaso ao marido, e não à esposa.

Sétimo, o motivo desse ato nunca é explicitado, com uma única exceção. Todos os autores deixam implícito que o motivo era a curiosidade, embora nenhuma das fontes clássicas mencione a existência de uma proibição formal de abrir o vaso. Somente Bábrio, que entende o mito não como uma narrativa sobre a fragilidade feminina mas como um comentário a respeito da escolha trágica do homem entre o conhecimento e o contentamento, faz uma afirmação explícita:

Zeus reuniu todos as coisas benfazejas no vaso e o entregou, fechado, ao homem. Mas o homem, incapaz de refrear seu desejo de saber, disse: “O que pode haver ali dentro?”. E então, levantando a tampa, lhes deu a liberdade de voar de volta para as moradas dos deuses, e elas assim fugiram da terra em direção aos céus. Só a Esperança permaneceu.

Entre os clássicos latinos, os registros são surpreendentemente escassos, o que pode ser uma das razões pelas quais os italianos nuncase sentiram à vontade com ela. Pandora não aparece nem em Ovídio, nem em Virgílio, Horácio, Lucano, Cícero, Sêneca, Martiano Capella ou Macróbio. Na verdade, o nome dela só é mencionado por quatro escritores romanos, dos quais apenas um alude de maneira rápida e confusa ao incidente do píthos.

Plínio assegura, como Pausânias, que a base do Partenon de Fídias, em Atenas, mostrava a “Criação [mais exatamente: A Outorga dos Dons] de Pandora perante Vinte Deuses”, mas demonstra escasso conhecimento do tema quando usa palavras gregas em vez de latinas (Pandoras genesim em lugar de Pandorae originem ou formationem), e quando salienta o fato de que está fazendo uma mera citação (apellant). Higino limita-se a dizer que, depois de Prometeu ter modelado o primeiro homem com o barro, Vulcano, a mando de Júpiter, confeccionou a imagem de uma mulher, igualmente de barro, “a quem Minerva deu uma alma e cada um dos outros deuses presenteou com um dom, razão pela qual ela recebeu o nome de Pandora”; e que “ela foi doada como esposa a Epimeteu, irmão de Prometeu”.

Atribuindo a Prometeu e não a Vulcano a criação de Pandora, Fulgêncio traduz o nome dela em grego como omnium munus, ou, em outra passagem, como universale munus, ao que acrescenta uma breve explicação alegórica: ela fora assim chamada “porque a alma é a mais geral das dádivas”. Mas em outro capítulo, ao tratar do nascimento de Erictônio, Fulgêncio a confunde com Pandroso, uma das filhas de Cécrops. O único escritor romano que menciona o tema do píthos é Porfírio, comentador de Horácio no século III. Tecendo divagações sobre Carmina I, 3, 29, ele escreve: “Hesíodo diz que quando Prometeu roubou o fogo do céu, enviou Pandora à terra como castigo; pois quando essa mulher abriu um vaso de mantimento, irromperam dali todos os tipos de pragas que afetam a humanidade”.
Isso é tudo o que os mitógrafos da Idade Média latina sabiam a respeito de Pandora. Na verdade, todo o conhecimento que tinham se reduzia (já que Porfírio parece ter sido desconhecido) ao que Fulgêncio escrevera. Um proto-humanista como Baudri de Bourgueil (1046-1130) conseguiu sintetizar a concepção do alto medievo sobre Pandora em dois versos mal escandidos, mas inequivocamente lisonjeiros:

A imagem que Prometeu forjou foi chamada “Pandora”,Dádiva de todas as coisas e bem geral.

O breve relato de Boccaccio em Genealogia deorum, ainda que baseado no mesmo texto de Fulgêncio e tão omisso sobre a história do píthos quanto as demais fontes medievais, trata Pandora de modo menos benevolente. Sempre pretendendo saber mais grego do que de fato sabia, Boccaccio não se satisfez com a explicação aceitável e reconhecida sobre o nome de Pandora como omnium munus (“dom de todos”, que nas primeiras edições da Genealogia foi impresso errado, como omnium minus, isto é, “desprovida de tudo”, e por isso foi traduzido como “manca d’ogni cosa” nas versões italianas). Como alternativa, Boccaccio propôs derivar o nome de Pandora de “pan, quod est totum, et doris, quod est amaritudo” [pan, que é tudo, e doris, que é amargura, dor]. Em consequência dessa estranha etimologia, Boccaccio interpreta o nome do primeiro ser humano – pois parece imaginar Pandora como homem, ou, pelo menos, como hermafrodita, já que numa determinada frase a chama de “Pandorus” – com o significado de “todo cheio de amargura”, e no final do capítulo faz uma referência a Jó.

Curiosamente, os patriarcas da Igreja são mais importantes para a transmissão – e transformação – do mito de Pandora que os escritores seculares: numa tentativa de corroborar a doutrina do pecado original recorrendo a um paralelo clássico, ainda que isso significasse opor a verdade cristã a uma fábula pagã, eles associaram Pandora a Eva, uma decisão cujas consequências só se fizeram sentir nos séculos XVI e XVII.
Em sua obra De corona militis, Tertuliano (que em outro texto se refere a Hesiodi Pandora como uma figura de retórica que denota a perfeita mistura ou fusão de todas as coisas, sendo por isso aplicável à perfeição e totalidade de Cristo) insiste, de maneira cordial, para não dizer humorística, que se deve atribuir a Eva e não a Pandora o primeiro e mais razoável emprego dos modos e ornamentos femininos:

Se realmente existiu um dia uma certa Pandora, citada por Hesíodo como a primeira mulher, foi dela a primeira cabeça que as Graças coroaram com um diadema; posto que todos lhe concederam dons e, por conseguinte, ela recebeu o nome de “Pandora”; mas Moisés – um pastor profético mais que um poeta – nos descreve a primeira mulher, Eva, ornada, mais apropriadamente, com folhas ao redor da cintura em vez de flores lhe cingindo as têmporas. Por isso, Pandora não existiu.

Foram os patriarcas gregos que salientaram o incidente do píthos. Gregório de Nazianzo, depois de apresentar Pandora como um exemplo de vaidade, fraude, impudor, narcisismo e lascívia, e chegando a superar Hesíodo quando a qualifica de “delícia mortal”, conclui lembrando aos crentes a Queda do Homem: “Mas ignoremos as fábulas e ouvi as palavras que vos trago a partir da revelação divina; não ouvistes como a brilhante cor da árvore fatídica levou vosso primeiro pai ao engano? Ele foi seduzido e expulso do Paraíso verdejante pela mentira do Inimigo e pelo conselho de sua mulher”. Orígenes compara explicitamente a história do píthos proibido com a do fruto proibido. No Livro IV de Contra Celsum, ele tenta refutar o adversário, que havia elogiado os mitos do “divino Hesíodo” como ideias filosóficas mascaradas de mitologia, ao mesmo tempo que ridicularizava o Gênese. Considerando isso injusto, Orígenes alega que a história de Adão e Eva não é menos suscetível a uma interpretação alegórica, nem menos carregada de “significado racional e transcendência secreta” que qualquer narrativa pagã sobre a criação do homem. Mas depois inverte a situação: a história de Adão e Eva, diz ele, pode “ofender a razão” se a aceitarmos de modo literal; a de Pandora, ao contrário, é pura e simplesmente divertida. À guisa de documentação – e talvez se divertindo um bocado com a história -, Orígenes repete todo o trecho de Os trabalhos e os dias, só interrompendo a narrativa para chamar a atenção para o efeito particularmente cômico, “risível”, do incidente do píthos, com o que propicia aos filólogos do futuro um bom número de excelentes leituras.

Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br