Göbekli Tepe: O berço da religião

ago 29, 2011 by

Pensávamos que a agricultura fosse a mãe das cidades, da escrita e da arte. Agora o templo mais antigo do mundo sugere que a civilização nasceu do impulso da devoção.

Por Charles C. Mann

 


De tempos em tempos, a aurora da civilização é reencenada em uma remota colina no sul da Turquia. Os participantes chegam de ônibus turísticos, e são turcos em sua maioria. Os ônibus sobem aos solavancos pela estrada tortuosa e atracam como couraçados defronte a um portal de pedra na crista do monte. Despejam uma avalanche de gente às voltas com garrafas d’água e tocadores de MP 3. Os guias se esgoelam em instruções e explicações. Os visitantes não ligam e se dispersam monte acima. Quando chegam ao topo, é um festival de queixos caídos.
Dão de cara com dezenas de imensos pilares de pedra, dispostos em círculos, tombados uns sobre os outros. Conhecido como Göbekli Tepe, o sítio lembra Stonehenge, na Inglaterra, só que foi construído bem antes e não com blocos toscos, mas pilares de calcário esculpidos e decorados com baixos-relevos de animais: um cortejo de gazelas, serpentes, raposas, escorpiões e javalis ferozes. O conjunto foi erguido há cerca de 11,6 mil anos, sete milênios antes da Grande Pirâmide de Gizé. Ele contém o mais antigo templo conhecido. Göbekli Tepe, aliás, é o mais antigo exemplo de arquitetura monumental, a primeira estrutura maior e mais complexa que uma cabana que o homem já edificou. Pelo que sabemos, quando esses pilares foram erguidos, não existia nada no mundo em uma escala comparável.

Na época da construção de Göbekli Tepe, boa parte da raça humana reunia-se em pequenos grupos nômades que sobreviviam do extrativismo vegetal e da caça. Para edificar o sítio, foi preciso um ajuntamento de pessoas em dimensões inéditas. É impressionante que os construtores do templo tenham sido capazes de cortar, moldar e transportar pedras de 16 toneladas por centenas de metros sem dispor de rodas ou de animais de tração. Os peregrinos que vinham a Göbekli Tepe viviam em um mundo sem escrita, metal ou cerâmica; para quem se aproximava do templo vindo de baixo, os pilares assomavam como gigantes inflexíveis, e os animais entalhados, tremeluzindo à luz do fogo, deviam parecer emissários de um mundo espiritual que a mente humana talvez apenas começasse a conceber.

Os arqueólogos ainda estão escavando Göbekli Tepe e debatendo seu significado. Mas já sabem que esse sítio é o mais importante em uma série de descobertas inesperadas que revolucionaram as ideias anteriores sobre o passado remoto de nossa espécie. Há apenas 20 anos, a maioria dos estudiosos acreditava saber a época, o local e a sequência aproximada da Revolução Neolítica, a crucial transição que resultou no surgimento da agricultura e transformou o modo de vida do Homo sapiens. De caçadores-coletores em grupos esparsos os homens passaram a viver em povoações agrícolas e mais tarde em sociedades tecnologicamente refinadas, com grandes templos, torres, reis e sacerdotes que dirigiam o trabalho dos súditos e registravam seus feitos por escrito. Várias descobertas recentes, todavia, com destaque para Göbekli Tepe, estão forçando os arqueólogos a reconsiderar.

De início a Revolução Neolítica foi vista como um evento isolado – um lampejo de genialidade – ocorrido em um único local, a Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates na região do atual Iraque; teria depois se difundido para Índia, Europa e outras partes. A maioria dos arqueólogos supunha que esse repentino florescimento da civilização resultara sobretudo de mudanças ambientais: um aquecimento gradual em fins da Idade do Gelo, permitindo que pessoas começassem a cultivar plantas e criar animais em abundância. Os novos estudos sugerem que a “revolução”, na verdade, foi obra de muitas mãos em uma área imensa, no decorrer de milhares de anos. E pode ter sido impulsionada não pelo ambiente, mas por um fator diferente.

Após um instante de deslumbramento, os turistas no sítio desembestam a fotografar com câmeras e celulares. Onze milênios atrás, ninguém tinha equipamento digital, é claro. Fora isso, as coisas mudaram menos do que se poderia pensar. A maioria dos grandes centros religiosos do mundo, no passado e no presente, é destino de peregrinações – Vaticano, Meca, Jerusalém, Bodh Gaya (onde Buda atingiu a iluminação), Cahokia (o enorme complexo dos nativos americanos próximo a St. Louis). São monumentos para viajantes espirituais, muitos deles vindos de longe para se admirar e se comover. Göbekli Tepe pode ter sido o primeiro desses centros, o protótipo. E sugere, ao menos para os arqueólogos que lá trabalham, que a noção do sagrado – sem falar da queda dos seres humanos por um bom espetáculo – pode ter ensejado a própria civilização.

Klaus Schmidt soube logo que iria trabalhar por muito tempo em Göbekli Tepe. Hoje pesquisador do Instituto Alemão de Arqueologia (DAI , na sigla em alemão), Schmidt passara o outono de 1994 percorrendo o sudeste da Turquia. Trabalhara em um sítio por alguns anos e agora procurava outro local para escavar. A maior cidade da região é Şanlıurfa. Para uma jovenzinha espevitada como Londres, Şanlıurfa é muito velha. Supõe-se que o profeta Abraão nasceu ali. Schmidt estava na cidade em busca de um lugar que o ajudasse a entender o Neolítico, um local que fizesse Şanlıurfa parecer recente. Ao norte, o solo ondula nos primeiros contrafortes das montanhas da Turquia meridional, a nascente dos rios Tigre e Eufrates. A 14 quilômetros da cidade, há uma cordilheira com uma crista arredondada que o povo local chama de Morro Barrigudo – Göbekli Tepe.

Nos anos 1960, arqueólogos da Universidade de Chicago haviam feito um levantamento preliminar da região e concluído que Göbekli Tepe não era muito promissor. Havia sinais de modificação no topo do monte, mas os estudiosos os atribuíram às atividades de um posto avançado militar da era bizantina. Viram pedaços esparsos de calcário e pensaram ser de lápides. Schmidt encontrou a breve descrição do monte feita pelos arqueólogos de Chicago e resolveu conferir. Viu no chão fragmentos de sílex – um número imenso. “Minutos depois de chegar”, diz Schmidt, ele já percebera que estava em um lugar em que dezenas ou talvez centenas de pessoas haviam trabalhado milênios atrás. As placas de calcário não eram túmulos bizantinos, mas algo bem mais antigo. Ele começou a escavar no local no ano seguinte, em colaboração como o DAI e o Museu de Şanlıurfa.

Alguns centímetros sob a superfície, o grupo encontrou uma pedra trabalhada com esmero. Depois outra e mais outra – um círculo de pilares em pé. Com o passar dos meses e anos, a equipe de Schmidt, um grupo mutável de pós-graduandos alemães e turcos e 50 moradores da região, achou um segundo círculo de pedras, depois um terceiro e então outros. Estudos geomagnéticos revelaram em 2003 que existem pelo menos 20 círculos aglomerados a esmo debaixo da terra. Os pilares mais altos têm 5,5 metros de altura e pesam 16 toneladas. Animais em baixo-relevo enxameiam a superfície dos pilares, cada um em estilo diferente, uns poucos tão refinados e simbólicos quanto a arte bizantina. Outras partes do monte estavam juncadas com o maior depósito de utensílios antigos de sílex que Schmidt já vira – um armazém neolítico de facas, machadinhas e projéteis pontiagudos. Embora tenha sido preciso transportar as pedras de vales vizinhos, diz Schmidt, “havia aqui mais sílices em uma pequena área de 1 ou 2 metros quadrados do que muitos arqueólogos encontram em sítios inteiros”.

Os círculos seguem a mesma configuração. Todos são feitos de pilares de calcário moldados como um espigão ou um T maiúsculo. Em feitio de lâmina, os pilares têm cerca de cinco vezes mais largura que profundidade. Estão separados pela distância de um braço ou mais, e interligados por muros baixos de pedra. No meio de cada círculo há dois pilares mais altos, com as extremidades finas espetadas em encaixes rasos entalhados no chão. Pergunto a Eduard Knoll, arquiteto alemão que trabalha com Schmidt na preservação do sítio, se esse sistema de montagem é adequado aos pilares centrais. “Não”, responde ele. “Eles ainda não haviam dominado a engenharia.” Knoll supõe que os pilares podem ter sido escorados, talvez, por postes de madeira.

Para Schmidt, os pilares em forma de T retratam seres humanos estilizados. Essa ideia é reforçada pelo entalhe de braços fazendo ângulo com os “ombros” de alguns dos pilares, de mãos estendidas na direção do ventre coberto por uma tanga. As pedras estão voltadas para o centro do círculo, como em uma “reunião ou dança”, diz Schmidt. Talvez sejam uma representação de um ritual religioso. Quanto às figuras de animais correndo e saltando, Schmidt notou que a maioria é de bichos perigosos: escorpiões, javalis em pleno ataque, leões ferozes. É possível que as figuras representadas pelos pilares, que talvez servissem como totens, fossem guardadas pelos animais.

Os enigmas acumularam-se conforme as escavações prosseguiram. Por razões ainda desconhecidas, os círculos de Göbekli Tepe parecem ter perdido periodicamente seu poder – ou pelo menos seu encanto. A intervalos de poucas décadas, as pessoas enterravam os pilares e erigiam novas pedras – um círculo menor dentro do primeiro. Em alguns casos, depois, instalavam um terceiro. Por fim, enchiam tudo com entulho e faziam um círculo novo nas proximidades. O sítio talvez tenha sido construído, atulhado e reconstruído ao longo de vários séculos.

Curiosamente, a competência do povo de Göbekli Tepe para construir seus templos foi decaindo. Os círculos mais antigos são os maiores e têm arte e técnica mais refinadas. Ao longo do tempo, os pilares diminuíram e mais simples, assentados com cuidado cada vez menor. Os esforços parecem ter cessado por completo em 8200 a.C., quando tudo era declínio em Göbekli Tepe.

Tão importante quanto o que os pesquisadores encontraram foi o que não encontraram: sinais de habitação. Deve ter sido preciso centenas de pessoas para esculpir e erigir os pilares, mas o sítio não tinha nenhuma fonte de água – o rio mais próximo ficava a uns 5 quilômetros. Esses trabalhadores precisariam de moradia; porém, as escavações não acharam sinais de paredes, lareiras ou casas, nenhuma construção que Schmidt tenha interpretado como doméstica. Precisariam ser alimentados, mas também não há sinais de agricultura. Aliás, Schmidt não encontrou cozinhas coletivas nem fogueiras de cozinhar. O centro era um espaço cerimonial. Se alguém já viveu nesse local, não foi como residente, e sim a trabalho. A julgar pelos milhares de ossos de gazela e auroque achados no sítio, os trabalhadores parecem ter sido alimentados por remessas constantes de animais de caça vindas de locais distantes. Todo esse complexo empreendimento deve ter sido organizado por planejadores e capatazes, mas até agora não há indícios de hierarquia social. Não há nenhuma área habitacional reservada para os ricos, nenhuma tumba contendo bens de elite, nenhum sinal de que uns tinham dieta melhor que os outros.

“Eles eram extrativistas”, diz Schmidt, ou seja, viviam da coleta de plantas silvestres e da caça. “A ideia que tínhamos dos coletores sempre fora de grupos pequenos e nômades de algumas dezenas de pessoas. Não podiam construir estruturas permanentes, pensávamos, porque precisariam se deslocar em busca de recursos. Não podiam manter nenhuma classe especial de sacerdotes e artesãos, pois não podiam transportar todos os suprimentos extras para alimentá-los. Mas eis Göbekli Tepe, uma prova de que eles faziam tudo isso.”

Descobrir que caçadores-coletores construíram Göbekli Tepe foi como descobrir que alguém montou um Boeing 747 em um porão usando um estilete. “Eu, meus colegas, todos nós ficamos perplexos”, conta Schmidt. Paradoxalmente, o sítio pareceu ser ao mesmo tempo arauto do futuro mundo civilizado e o último, o mais grandioso emblema de um passado nômade que estava desaparecendo. Foi um feito assombroso, mas era difícil compreender como fora realizado ou o que significava. “Em dez ou 15 anos”, prevê Schmidt, “Göbekli Tepe será mais famoso que Stonehenge. E por boas razões.

Paira sobre Göbekli Tepe o fantasma de V. Gordon Childe. Australiano transplantado para a Inglaterra, Childe era um sujeito espalhafatoso, um marxista de carteirinha que andava de calção de golfe e gravata-borboleta e recheava seus discursos com louvores ao stalinismo. Acontece que ele foi um dos mais influentes arqueólogos do século passado. Grande sintetizador, Childe articulou as descobertas desconexas de seus colegas, elaborando esquemas intelectuais abrangentes. O mais famoso deles, apresentado nos anos 1920, é o conceito de Revolução Neolítica.

Em termos atuais, poderíamos resumir assim as ideias de Childe: o Homo sapiens surgiu em cena há cerca de 200 mil anos. Por boa parte dos milênios que se seguiram, a espécie mudou pouco, e os seres humanos viveram em pequenos grupos de extrativistas nômades. Ocorreu então a Revolução Neolítica, uma “mudança radical”, diz Childe, “repleta de consequências revolucionárias para a nossa espécie”. Em um relâmpago de inspiração, parte da humanidade voltou as costas ao extrativismo e adotou a agricultura. A prática do cultivo, segundo Childe, trouxe mais transformações. Para cuidar das plantações, as pessoas tiveram de parar com os deslocamentos e se fixar em povoações permanentes, onde criaram novas ferramentas e inventaram a cerâmica. A Revolução Neolítica, para Childe, foi um acontecimento de tremenda importância: “O maior da história humana depois do domínio do fogo”.

De todos os aspectos da revolução, a agricultura foi o mais importante. Por milhares de anos, homens e mulheres haviam perambulado por aquelas terras munidos de utensílios de pedra, cortando e levando para casa espigas de grãos silvestres. Embora esses primtivos possam ter cuidado das plantas que encontravam, ainda assim a vegetação era selvagem. O trigo e a cevada silvestres, ao contrário de suas versões domesticadas, despedaçam-se quando maduros; os grãos se soltam da planta e se espalham pelo chão, o que impossibilita colhê-los quando amadurecem. Geneticamente falando, a verdadeira cultura de grãos só começou quando os seres humanos cultivaram grandes áreas com plantas que haviam sofrido mutação e não se despedaçavam ao amadurecer, criando campos de trigo e cevada domesticados para a colheita.

Em vez de esquadrinhar o território para achar comida, agora as pessoas podiam cultivála conforme suas necessidades e onde precisassem, e assim viver juntas em grupos maiores. O crescimento da população foi estratosférico. “Só após a revolução – imediatamente depois – nossa espécie começou a se multiplicar depressa”, escreveu Childe. Nessas sociedades mais populosas, as ideias puderam ser trocadas com maior facilidade, e o ritmo da inovação tecnológica e social acelerou-se. Floresceram a religião e a arte, as marcas registradas da civilização.

Childe, como a maioria dos pesquisadores atuais, acreditava que a revolução havia começado no Crescente Fértil, a faixa de terra que se arqueia para o noroeste a partir de Gaza, passa pelo sul da Turquia e se dobra a sudeste, entrando no Iraque. Fazendo fronteira no sul com o implacável deserto da Síria e no norte com as montanhas da Turquia, o Crescente é um trecho de clima temperado cercado de extremos inóspitos. Sua ponta oriental é a confluência dos rios Tigre e Eufrates no sul do Iraque – região de um reino conhecido como Suméria, que remonta a 4000 a.C. Na época de Childe, a maioria dos estudiosos julgava que a Suméria representava o nascimento da civilização. O arqueólogo Samuel Noah Kramer resumiu essa posição nos anos 1950 em seu livro A História Começa na Suméria. Mas, antes de Kramer concluir sua obra, as ideias já estavam sendo revistas no lado oposto do Crescente Fértil, o oeste. No Levante – a área que hoje engloba Israel, os territórios palestinos, Líbano, Jordânia e oeste da Síria – os arqueólogos haviam descoberto povoações datadas de 13000 a.C. Conhecidos como povoados natufianos (o nome do primeiro sítio descoberto), eles se espalharam por todo o Levante em fins da Idade do Gelo, quando teve início um período de clima quente e úmido na região.

A descoberta dos natufianos foi a primeira pedrada na vidraça da Revolução Neolítica de Childe. Ele apontara a agricultura como a fagulha necessária para permitir as povoações e iniciar a civilização. Mas, embora os natufianos vivessem em povoados com até centenas de pessoas, eram extrativistas, e não agricultores; caçavam gazelas e coletavam centeio, aveia e trigo silvestres. “Foi um sinal de que precisávamos reformular nossas ideias”, diz o arqueólogo Ofer Bar-Yosef.

Os povoados natufianos enfrentaram tempos difíceis por volta de 10800 a.C. As temperaturas na região sofreram quedas abruptas em torno de 7oC, uma mini-idade do gelo que durou 1,2 mil anos e aumentou a aridez no Crescente Fértil. O hábitat animal e as áreas onde cresciam os grãos se reduziram, e vários povoados viramse populosos demais para a quantidade de alimentos local. Boa parte dessa população reverteu ao extrativismo nômade, varando a região em busca de fontes de alimento remanescentes.

Alguns povoados tentaram se adaptar às condições mais áridas. O de Abu Hureya, onde hoje é o norte da Síria, parece ter tentado o cultivo dos pés de centeio locais, talvez com o replantio. Depois de examinar os grãos achados no sítio, os ingleses Gordon Hillman e Andrew Moore concluíram em 2000 que alguns eram maiores que seus equivalentes silvestres – um possível sinal de domesticação, pois o cultivo melhora qualidades que as pessoas valorizam, como o tamanho das frutas e sementes. Bar-Yosef e outros pesquisadores deduziram que sítios próximos, como Mureybet e Tell Qaramel, também tiveram agricultura.

Se esses arqueólogos estivessem certos, tais protovilarejos permitiriam uma outra explicação para o nascimento da sociedade complexa. Childe supôs que a agricultura veio primeiro, que foi a inovação que permitiu ao homem aproveitar a oportunidade de um novo ambiente favorável para ampliar seu domínio sobre a natureza. Os sítios natufianos no Levante, por sua vez, sugerem que primeiro o homem se fixou em povoações e depois, em consequência de uma crise, surgiu a agricultura. Diante da aridez e do resfriamento do ambiente e do crescimento de suas populações, como especula Bar-Yosef, os seres humanos nas áreas que ainda permaneciam férteis teriam pensado: “Se nos mudarmos, outros virão explorar nossos recursos. Para sobreviver, o melhor a fazer é ficar aqui e explorar nosso território”. A agricultura teria sido o resultado.

Foi fácil, nos anos 1990, entender a ideia de que a Revolução Neolítica teve por impulso uma mudança climática, dada a nossa própria preocupação com os efeitos do aquecimento global. A hipótese foi defendida em inúmeros artigos e livros e por fim sacramentada na Wikipedia. Mas os críticos argumentam que as evidências são fracas, sobretudo porque Abu Hureyra, Mureybet e outros sítios no norte da Síria foram inundados por represas antes de ser bem escavados. “Era uma teoria sobre as origens da cultura humana que se baseava em meia dúzia de sementes graúdas”, diz George Willcox, especialista do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França.

Não seria mais provável que esses grãos tenham inchado durante a torrefação ou que alguém em Abu Hureyra tenha encontrado um centeio selvagem diferente? Enquanto fervia o debate sobre os natufianos, Klaus Schmidt trabalhava em Göbekli Tepe. E isso iria, de novo, forçar muitos estudiosos a reavaliar suas ideias.

Antropólogos supõem que a religião organizada começou como um recurso para mitigar as tensões que surgiram quando os caçadorescoletores se fixaram, adotaram a agricultura e desenvolveram sociedades populosas. Comparada a um grupo nômade, a sociedade de um vilarejo tem objetivos complexos e de mais longo prazo: armazenar grãos, manter habitações. É maior a probabilidade de que os moradores alcancem esses objetivos se os membros se comprometerem com o empreendimento coletivo. Embora práticas religiosas primitivas – sepultar os mortos, criar arte em cavernas, esculpir estatuetas – houvessem surgido dezenas de milhares de anos antes, a religião organizada, segundo essa concepção, só veio a emergir quando foi necessária uma visão comum da ordem celestial para dar coesão a novos, numerosos e frágeis grupos humanos. Ela também poderia ter ajudado a justificar a hierarquia social que se formava em uma sociedade mais complexa. Os que ascendiam ao poder eram vistos como dotados de uma ligação especial com os deuses. Comunidades de fiéis, unidas em uma visão sobre o mundo e seu lugar nele, eram mais sólidas que os meros ajuntamentos de gente briguenta.

Göbekli Tepe, na opinião de Schmidt, sugere um cenário inverso: a construção de um templo por um grupo de extrativistas é indício de que a religião organizada pode ter surgido antes da agricultura e dos outros aspectos da civilização. Sugere que o impulso de se reunir para rituais sagrados nasceu quando os seres humanos deixaram de se ver como parte do mundo natural e passaram a buscar o domínio sobre a natureza. Quando os extrativistas começaram a se fixar em povoações, criaram uma divisão entre a esfera humana – o aglomerado fixo de casas com centenas de habitantes – e a perigosa terra além da fogueira, povoada por animais mortíferos.

O arqueólogo francês Jacques Cauvin supôs que essa mudança de mentalidade foi uma “revolução de símbolos”, um desvio conceitual que permitiu aos seres humanos imaginar deuses – seres sobrenaturais à semelhança do homem – em um universo fora do mundo físico. Schmidt vê Göbekli Tepe como uma evidência em favor da teoria de Cauvin. “Os animais eram guardiões do mundo dos espíritos”, diz. “Os relevos esculpidos nos pilares em T ilustram esse outro mundo.”

Schmidt imagina que os extrativistas que viviam em um raio de 160 quilômetros de Göbekli Tepe tenham criado o templo como um local sagrado para se reunir em eventos, e talvez trazer presentes e tributos a seus sacerdotes e artesãos. Teria sido preciso algum tipo de organização social não só para construir mas também para lidar com as multidões que o lugar atraía. Podemos imaginar cantos e tambores, os animais nos grandes pilares dando a impressão de se moverem à luz bruxuleante das tochas. Decerto havia festas; Schmidt descobriu bacias de pedra que talvez tenham sido usadas para cerveja. O templo era um locus espiritual, mas também pode ter sido a versão neolítica da Disneylândia.

Com o passar do tempo, acredita Schmidt, a necessidade de obter alimento suficiente aos que trabalhavam e se reuniam nas cerimônias em Göbekli Tepe pode ter levado ao cultivo intensivo de cereais silvestres e à criação de algumas das variedades domesticadas. De fato, hoje os cientistas supõem que um centro agrícola surgiu no sul da Turquia, a uma distância factível de Göbekli Teppe, bem na época em que o templo estava no auge. Os ancestrais silvestres mais próximos conhecidos da espécie de trigo Triticum monococcum são encontrados nas encostas de Karaca Dağ, uma montanha a 96 quilômetros no nordeste de Göbekli Tepe. Em outras palavras, a guinada para a agricultura apregoada por V. Gordon Childe pode ter sido resultado de uma necessidade arraigada na mente humana, uma fome que ainda impele pessoas a viajar pelo globo em busca de visões inspiradoras de reverência.

Algumas das primeiras evidências de domesticação de plantas provêm de Nevalı Çori, um povoado nas montanhas a mais de 30 quilômetros. Como Göbekli Tepe, Nevalı Çori surgiu logo depois da mini-idade do gelo, uma época que os arqueólogos designam pelo insosso termo Neolítico Pré-Cerâmica (NPC ). Nevalı Çori agora está inundado por um lago de uma usina hidrelétrica. Mas, antes que as águas impedissem as pesquisas, arqueólogos encontraram pilares em forma de T e imagens de animais parecidos com os que Schmidt mais tarde descobriria em Göbekli Tepe. Pilares e imagens semelhantes existiram em povoações do NPC distantes 160 quilômetros de Göbekli Tepe. Assim como hoje é possível supor que os lares com cenas da Virgem Maria pertencem a cristãos, diz Schmidt, as imagens nesses sítios do NPC indicam uma religião comum – uma comunidade de fé ao redor de Göbekli Teppe que pode ter sido o primeiro grupo religioso de fato grande no mundo.

Naturalmente, há colegas de Schmidt que discordam dele. A ausência de indícios de casas, por exemplo, não prova que ninguém vivia em Göbekli Tepe. E os arqueólogos que estudam as origens da civilização no Crescente Fértil andam cada vez mais desconfiados de qualquer tentativa de imaginar um cenário que sirva a todos os casos, de apontar uma causa principal única. Mais provável é que os ocupantes desses vários sítios estivessem experimentando com os blocos construtores da civilização, tentando encontrar combinações que funcionassem. Em um lugar, a agricultura pode ter sido o alicerce; em outro, a arte e a religião; mais adiante, as pressões populacionais ou a hierarquia social podem ter sido o motor. Por fim, todos acabaram no mesmo lugar. Talvez não tenha havido um caminho único para a civilização, e a humanidade tenha chegado a ela por diferentes meios e em lugares distintos.

O ano de 2011 assinala o 17º aniversário do trabalho de Klaus Schmidt no local. Nos anais da arqueologia, o que não falta é cientista que, na afobação, descuida e arruína achados importantes, destruindo para sempre as chances de conhecimento. Schmidt está decidido a não pôr seu nome nessa lista. Hoje, menos de um décimo do sítio de 9 hectares se encontra sob o sol.

Schmidt ressalta que investigações adicionais em Göbekli Tepe podem mudar sua opinião atual sobre a importância do sítio. Nem mesmo a idade está definida: Schmidt não tem certeza de que atingiu a camada mais profunda. “A cada mistério que solucionamos, desenterramos mais dois”, diz. Apesar disso, ele já chegou a algumas conclusões. “Vinte anos atrás todos acreditavam que a civilização era impulsionada por forças ecológicas”, reflete. “Acho que agora estamos aprendendo que ela é produto da mente humana.”

Segue abaixo um vídeo produzido pela History Channel, sobre as “Unexplained Structures” (Estruturas sem explicação), em que trata de Gobekli Tepe.