O começo de uma teocracia no Brasil?

jan 13, 2012 by

Por Jean Wyllys (PSOL-RJ)

Soube que o colega João Campos – fundamentalista cristão e deputado federal pelo PSDB de Goiás – andou coletando assinaturas para apresentar o que eu chamo de “PEC da Teocracia” meses atrás, quando fui abordado por um dos muitos coletores de assinaturas para PECs e frentes parlamentares que se espalham pelos corredores da Câmara dos Deputados (daqui a pouco eu explico por que eu assim “batizo” a PEC). Como não assino proposição alguma sem, antes, ler seu conteúdo, assim que me dei conta do que pretende a PEC de Campos (e o que ela pretende me dá arrepios de pavor), não só recusei-me a subscrevê-la como passei a alertar os deputados aliados do perigo que a proposta representa.  Apesar de minha iniciativa, o deputado João Campos conseguiu o número de assinaturas necessário para protocolar sua “PEC da Teocracia”, em parte porque a bancada cristã na Câmara é numerosa, em parte porque é grande o número de deputados que, na pressa, assinam qualquer proposição sem ao menos ler seu conteúdo.

A notícia da “PEC da Teocracia” causou alvoroço entre os setores progressistas da sociedade e nas redes sociais da internet. Choveram críticas ao propositor da emenda constitucional e, sobretudo, aos deputados do PT, PV, PC do B e PPS – partidos considerados de esquerda e históricos defensores de um estado laico e democrático de direito – que a subscreveram. Constam lá, por exemplo, as assinaturas dos petistas Domingos Dutra e Nelson Pellegrino, dois parlamentares que, aparentemente, jamais endossariam qualquer proposição legislativa que pusesse em risco a laicidade do Estado e o bem-estar de minorias sociais e religiosas.
Alguns desses parlamentares de “esquerda” argumentaram, em defesa própria, que assinaram a “PEC da Teocracia” apenas para “fomentar o debate”; que não pretendem votar pela sua aprovação… O curioso é que esses mesmos parlamentares não assinaram a PEC do Casamento Civil Igualitário, que não oferece qualquer perigo à laicidade do Estado nem às liberdades individuais, muito pelo contrário. Não assinaram nem mesmo para “fomentar o debate” na sociedade em torno da negação de direitos fundamentais à comunidade homossexual. Haja incoerência…
Mas voltemos à PEC n° 99 de 2011: a “PEC da Teocracia”… Eu assim a batizo porque ela pretende que as “associações religiosas” possam “propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição Federal”. O que isso significa? Que, caso essa PEC venha a ser aprovada, as “associações religiosas” passam a fazer parte do seleto rol dos legitimados pela Constituição de 1988 a darem início ao processo de “controle concentrado de constitucionalidade”: (a) o Presidente da República;  (b) a Mesa do Senado Federal; (c) a Mesa da Câmara dos Deputados; (d) o Procurador-Geral da República; (e)o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (f) partido político com representação no Congresso Nacional; (g) Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (h) Governador de Estado ou do Distrito Federal; e (i)  confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ)
Qual seria o sentido em se admitir “associações religiosas” entre os legitimados a darem início ao processo de “controle concentrado de constitucionalidade” se a finalidade institucional das entidades confessionais não é promover a supremacia da Constituição, mas, sim, desenvolver a fé em seus adeptos? Ora, se o Estado é laico – como o é o brasileiro desde 1980 – questões de cunho moral e místico não podem ser parâmetro nem para a elaboração das normas nem para o seu controle. Valores espirituais não podem ser impostos normativamente ao conjunto da população, nem de forma afirmativa nem por via reflexa do controle, sob pena de violar a laicidade do Estado. A laicidade significa que as religiões devem estar protegidas da interferência abusiva estatal em suas questões internas e, por outro lado, que o Estado deve ser neutro em relação às diferentes concepções religiosas e deve estar a salvo de tais influências indevidas. Em uma sociedade multicultural e plurirreligiosa como a nossa, em que convivem pessoas das mais diferentes crenças (e também aquelas que não professam credo algum e que devem ser reconhecidas e respeitadas!), a laicidade é indispensável para que todos sejam tratados com o mesmo respeito e consideração.
O fundamentalista João Campos refere-se em sua PEC, malandramente, a “associações religiosas”. Porém, deve-se tomar essa expressão por “igrejas cristãs”, pois é certo que ele e quejandos não estão incluindo, aí, os centros de umbanda ou espíritas, os terreiros de candomblé nem as mesquitas islâmicas, pois, não é segredo para ninguém que o esporte predileto dos fundamentalistas cristãos é, depois da perseguição aos homossexuais, a demonização das religiões concorrentes. A “PEC da Teocracia” será então o endosso, por parte do Estado, das religiões cristãs… Ora, o endosso do Estado de alguma religião fará com que aqueles que não a adotam tornem-se cidadãos de segunda classe. As normas religiosas, na media em que são compartilhadas por apenas alguns membros da população, e na medida em que pertencem à esfera moral e não jurídica, não podem ser impostas por meio das leis do Estado, nem servir de parâmetro de controle para estas.
A “PEC da Teocracia” viola cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais. Ou seja, de acordo com a literalidade da Constituição Federal, qualquer proposta de emenda constitucional que tenda a esse tipo de violação não pode sequer ser apreciada. Na hipótese de as associações religiosas serem legitimadas para propor ações de inconstitucionalidade, os critérios adotados para esse controle seriam valores morais de uma determinada confissão -  e isso aniquilaria a inviolabilidade de crença de todos os outros cidadãos que não compartilham da mesma fé.
Na prática, caso seja aprovada, a “PEC da Teocracia” servirá para que fundamentalistas cristãos como João Campos e quejandos tenham mais um instrumento para abortar leis ou atos normativos que estendam a cidadania a homossexuais ou procurem preservar sua dignidade humana. Ou ainda proposições legislativas que objetivem a descriminalização da maconha (bandeira histórica do PV) e a legalização do aborto por anencefalia. A emenda nem é mesmo uma proposição que visa à pluralidade das concepções religiosas. Pelo contrário: é fruto de uma onda encampada por um segmento que pretende impor seus credos — que devem pertencer à esfera privada — a toda a coletividade.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br

Deputados que assinaram a PEC 99/2011
 

PMDB
André Zacharow (PR), Aníbal Gomes (CE), Antônio Andrade, Asdrubal Bentes (PA), Átila Lins (AM), Darcísio Peroni (RS), Eduardo Cunha (RJ), Fabio Trad (MS), Fátima Pelaes (AP), Francisco Escórcio (MA), Íris de Araújo (GO), João Magalhães (MG), Joaquim Beltrão (AL), José Priante (PA), Júnior Coimbra (TO), Leandro Vilela (GO), Lelo Coimbra (ES), Leonardo Quintão (MG), Marcelo Castro (PI), Natan Donadon (RO), Newton Cardoso (MG), Paulo Piau (MG), Pedro Chaves (GO), Professor Sétimo (MA), Osmar Serraglio (PR), Raul Henry (PE), Renan Filho (AL), Ronaldo Benedet (SC), Washington Reis (RJ),
PSDB
Alfredo Kaefer (PR), Andreia Zito (RJ), Antonio Carlos Mendes Thame (SP), Bonifácio de Andrada (MG), Bruno Furlan (SP), Carlaile Pedrosa (MG), Carlos Alberto Leréia (GO), Carlos Roberto (SP), Duarte Nogueira (SP), Eduardo Azeredo (MG), João Campos (GO), Jutahy Júnior (BA), Pinto Itamaraty (MA), Paulo Abi-Ackel (MG), Raimundo Gomes de Matos (CE), Rodrigo de Castro (MG), Rogério Marinho (RN), Romero Rodrigues (PB), Rui Palmeira (AL), Ruy Carneiro (PB), Otávio Leite (RJ), Sérgio Guerra (PE), Valdivino de Oliveira (GO), Vanderlei Macris (SP), William Dib (SP),
PT
Assis Carvalho (PI), Devanir Ribeiro (SP), Domingos Dutra (MA), Eudes Xavier (CE), Geraldo Simões (BA), Gilmar Machado (MG), Jesus Rodrigues (PI), João Paulo Lima (PE), Joseph Bandeira (BA), Leonardo Monteiro (MG), Miriquinho Batista (PA), Nelson Pellegrino (BA), Sibá Machado (AC), Zé Geraldo (PA).
PTB
Alex Canziani (PR), Arnon Bezerra (CE), Josué Bengtson (PA), Jovair Arantes (GO), Eros Biondini (MG), Magna Mofatto (GO), Nelson Marquezelli (SP), Nilton Capixaba (GO), Paes Landim (PI), Ronaldo Nogueira (RS), Silvio Costa (PE), Wolney Queiroz (PE).
PDT
Ademir Camilo (MG), Damião Feliciano (PB), Jorge Silva (ES), Flávia Morais (GO), João Dado (SP), Paulo Pereira da Silva (SP), Paulo Rubens Santiago (PE), Manato (ES), Salvador Zimbaldi (SP).
PRB
Acelino Popó (BA), Antonio Bulhões (SP), Cleber Verde (MA), Heleno Silva (CE), Otoniel Silva (SP), Vitor Paulo (RJ).
PP
Aline Corrêa (SP), Arthur Lira (AL), Jair Bolsonaro (RJ), João Pizzolatti (SC), Lázaro Botelho (TO), José Otávio Germano (RS), Nelson Meurer (PR), Rebecca Garcia (AM), Roberto Balestra (GO), Roberto Britto (BA), Roberto Teixeira (PE), Waldir Maranhão (MA), Simão Sessim (RJ).
PR
Anderson Ferreira (PE), Bernardo Santana de Vasconcell (MG), Davi Alves Silva Júnior (MA), Dr. Paulo César (RJ), Gorete Pereira (CE), Henrique Oliveira (AM), João Carlos Bacelar (BA), Lilian Sá (RJ), Lincoln Portela (MG), Lúcio Vale (PA), Milton Monti (SP), Neilton Mulim (RJ), Paulo Feijó (RJ), Paulo Freire (SP), Ronaldo Fonseca (DF), Sandro Mabel (GO), Wellington Fagundes (MT), Zoinho (RJ).
PSC
Andre Moura (SE), Costa Ferreira (MA), Antônia Lúcia (AC), Edmar Arruda (PR), Erivelton Santana (BA), Filipe Pereira (RJ), Lauriete (ES), Marcelo Aguiar (SP), Mário de Oliveira (MG), Pastor Marco Feliciano (SP), Ratinho Júnior (PR), Silas Câmara (AM), Takayama (PR), Zequinha Marinho (PA).
PSB
Ariosto Holanda (CE), Audifax (ES), Domingos Neto (CE), Dr. Ubiali (SP), Edson Silva (CE), Givaldo Carimbão (AL), Gonzaga Patriota (PE), Jefferson Campos (SP), Júlio Delgado (MG), Pastor Eurico (PE), Paulo Foletto (ES), Ribamar Alves (MA), Sandra Rosado (PSB), Valadares Filho (SE), Valtenir Pereira (MT).
DEM
Arolde de Oliveira (RJ), Efraim Filho (PB), Hugo Napoleão (PI), José Nunes (BA), Júlio Campos (MT), Júlio Cesar (PI), Onofre Santo Agostini (SC), Vitor Penido (MG),
PPS
Carmen Zanotto (SC), César Halum (TO), Stepan Nercessian (RJ),
PRTB
Aureio (RJ).
PCdoB
Chico Lopes (CE), Daniel Almeida (BA), Delegado Protógenes (SP),
PSL
Dr. Grilo (MG), Francisco Araújo (RR).
PTC
Edivaldo Holanda Júnior (MA),
PHS
Felipe Bornier (RJ), José Humberto (MG).
PV
Guilherme Muss (SP), Henrique Afonso (AC), Lindomar Garçon (RO), Paulo Wagner (RN), Roberto Lucena (SP);
PR
Izalci (DF), Maurício Quintella Lessa (AL)
PRP
Jânio Natal,
PMN
Jaqueline Roriz (DF), Walter Tosta (MG)
PTBdoB
Lourival Mendes (MA)

Fonte: http://qbrandotabus

Petição da Liga Humanista Secular do Brasil (assinem):
http://www.change.org/petitions/irmos-na-discordncia-rejeitem-a-pec99-em-nome… 
Site da câmara, onde é possível baixar o PEC 99-2011 e lê-lo na íntegra (é curtinho) e negativar ou positivar a medida. É apenas uma enquete, mas já é algo:
http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/207721-PEC-AUTOR…
Segue abaixo dois vídeos que tratam do tema:


Comentários

  1. Anonymous disse:

    Estado laico não é estado ateocrático e nem teocrático. É um estado que aceita todas as posições filosóficas e não proíbe a manifestação de nenhuma.